Dicionário de Verbos do Português Medieval - Séculos 12 e 13/14

 

INTRODUÇÃO

Esta edição1 do Dicionário de Verbos do Português Medieval - Séculos 12 e 13/14, na sequência do Dicionário de Verbos Portugueses do Século 13, publicado em 1999, corresponde a uma nova etapa do projecto então anunciado de elaboração de um Dicionário do Português Medieval, cuja importância e utilidade para um conhecimento mais aprofundado da língua portuguesa não carece de demonstração.

A informação do dvpm que agora se publica em suporte de papel está já disponível na Internet - http://cipm.fcsh.unl.pt/ -, assim como o corpus textual2 que serviu de base ao levantamento dos verbos e que é um subcorpus do cipm - Corpus Informatizado do Português Medieval.

Como é característica deste tipo de trabalhos, o dvpm e o cipm on-line continuarão a ser alargados e revistos à medida que o trabalho for avançando. No entanto, as sucessivas edições em papel do dvpm podem justificar-se, simultaneamente, por serem documentos de manuseamento mais fácil para alguns utilizadores e por constituírem registos datados que permitem, em qualquer momento, a percepção do percurso da investigação e a caracterização das suas diferentes fases.

A informação do Dicionário aqui impressa corresponde ao resultado de uma fase do projecto em que se procedeu ao levantamento exaustivo das formas verbais dos textos portugueses mais antigos em prosa integrados no cipm. Assim, tal como é indicado no título desta edição, as fontes textuais utilizadas são dos séculos xii e xiii, e há ainda algumas de data incerta, não sendo possível precisar se são do século xiii ou do século xiv. Correspondem a este caso as cópias do século xv de Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense.

A reflexão sobre os critérios estabelecidos pela equipa do Dicionário e a procura da sua aplicação tão uniforme quanto possível implicaram uma minuciosa revisão das entradas de todos os verbos do dvpm que neste momento estão disponíveis na correspondente base de dados, acessível através do endereço da Internet acima indicado.3

Na fase seguinte, que terá por base as Cantigas de Escárnio e Maldizer, dos séculos xiii e xiv4, bem como textos em prosa dos séculos xiv e xv seleccionados do cipm, não serão incluídas todas as formas verbais. Serão acrescentados os verbos que não se encontram atestados nas fontes já tratadas. Serão igualmente objecto de análise os verbos que não chegaram ao português actual e aqueles que se alteraram significativamente ao longo da sua história.

O novo documento de trabalho que agora se disponibiliza em versão impressa apresenta 790 verbos, dos quais 212 não estavam incluídos na edição de 1999. O corpus textual de onde foram extraídos os dados perfaz um total de 171.000 palavras, mais 36.000 do que tinha o corpus anteriormente trabalhado.

 

METODOLOGIA

A metodologia seguida para a preparação dos artigos do Dicionário de Verbos Portugueses do Século 13, publicado em 1999, não foi alterada na elaboração desta edição do dvpm. Como anteriormente, foi extraída a listagem automática das palavras do corpus textual e, a partir desta, foram identificados os conjuntos das formas que poderiam fazer parte dos paradigmas dos verbos. As concordâncias elaboradas para cada forma gráfica permitiram, na maior parte dos casos, classificar as formas pertencentes aos paradigmas verbais e delimitar o contexto necessário para a análise sintáctica e semântica a incluir na informação lexical de cada verbo. Nos casos em que os contextos das concordâncias se revelaram insuficientes recorreu-se à leitura dos textos.

Assim, cada artigo do dvpm contém:

  1. forma/s gráfica/s
  2. paradigma flexional
  3. propriedades semânticas
  4. propriedades sintácticas
  5. exemplo/s

e apresenta a mesma estrutura do Dicionário de 1999:

  1. vedeta
  2. total de ocorrências no corpus utilizado
  3. paradigma flexional (com o número de ocorrências e o código da fonte textual de cada forma gráfica)
  4. acepção em português contemporâneo
  5. selecção semântica
  6. selecção sintáctica
  7. exemplo/s (precedido/s da referência da fonte textual)

O aparecimento de absconder e asconder, que tanto poderiam ser verbos diferentes como duas variantes do verbo esconder, levou a um novo exame de todas as ocorrências. A análise mostrou que as acepções eram idênticas e que as variantes alternavam nos mesmos contextos, indiciando a existência de um único verbo. Foi decidido que, em situações deste tipo, sendo o segmento inicial diferente, são mantidos, para cada variante, artigos independentes parciais - apenas com a informação de 1, 2 e 3. Assim, só o artigo cuja vedeta é igual à forma actual ou a mais próxima desta tem a estrutura completa, com a informação de 4, 5, 6 e 7. Por esta razão, temos três artigos - absconder, asconder e esconder - em que os dois primeiros apresentam estruturas incompletas, e só o terceiro, esconder, fornece a totalidade da informação sobre o verbo.

 

VEDETA

O alargamento do corpus trouxe, inevitavelmente, novas formas, novos verbos e novas alografias. Estes novos dados conduziram, em alguns casos, à revisão dos critérios relativos à forma gráfica das vedetas.

Mantendo, além do critério linguístico, fundamental, o critério de funcionalidade, de acordo com o qual a vedeta, ?entendida como uma representação abstracta?, deverá ter a forma gráfica de infinitivo5 mais semelhante à forma ortográfica actual do verbo, quando este existe, foram usadas as seguintes regras de supressão e de substituição sistemática de grafemas:

  • <h> com função de marcação de hiato é eliminado
  • grafemas duplos, iniciais ou internos, com o mesmo valor fonético dos correspondentes simples → grafemas simples
  • <j> ou <y> com valor de vogal ou semi-vogal → <i>
  • <i>, <gi> ou <y> com valor de sibilante vozeada palatal → <j>
  • <u> com valor consonântico → <v>
  • <ll> ou <l> com valor de líquida palatal → <lh>
  • <n> ou <gn> com valor de nasal palatal → <nh>
  • <n> ou <~> representando a nasalação da vogal antes de oclusiva labial → <m>
  • <~> representando a nasalação da vogal antes de consoante não labial → <n>
  • <ç> antes de <e> ou <i> → <c>
  • <s> intervocálico com valor de surda → <ss>
  • <r> intervocálico com valor de múltipla → <rr>

A aplicação destas regras e a decisão relativa à forma gráfica da vedeta de alguns verbos, tomada com base nas formas atestadas, levantaram problemas de leitura actual de grafemas cujo valor, em certos contextos, não é equivalente ao actual. Temos, por exemplo, o caso de sanar, forma gráfica atestada, mas cuja oralização seria diferente no século xiii, pois o grafema <n>, naquele contexto, representaria a nasalação da vogal anterior e não a consoante /n/, como hoje.

Considerando que este Dicionário, como o precedente, constitui um instrumento de trabalho que se destina também a ?um público alargado, nomeadamente estudantes ou investigadores não medievalistas?, tornou-se evidente a necessidade de evitar leituras actuais que resultassem em anacronismos linguísticos. Assim, foi decidido manter, nas vedetas, as formas gráficas mais próximas da ortografia actual, quer por estarem atestadas quer por resultarem da análise das alografias, mas fazendo-as acompanhar, nos casos mais problemáticos, de uma nota de rodapé com a representação do que se supõe ser a oralização correspondente aos segmentos relevantes e uma informação sobre a respectiva etimologia. Por exemplo, o artigo correspondente ao verbo sanar terá, em nota, a seguinte indicação: "s/ã/ar; do latim sanare". Esta solução permitirá a um leitor não especialista compreender que a forma actual, idêntica na grafia, não corresponde à forma verbal em uso no século xiii e não estranhar as outras formas, grafadas com <~>, registadas na ficha do verbo. Do mesmo modo, no verbo vir, teremos uma nota de rodapé com a informação "v/ĩi/r; do latim venīre ", que fará entender que a grafia com um só <i> não dá conta da existência de um hiato com nasalação, que corresponderia, certamente, à forma arcaica do verbo.

No caso de haver verbos relacionados6, mesmo que um deles não tenha sido atestado com uma determinada grafia, procura-se regularizar, por analogia, a grafia da vedeta. Por exemplo, em sopenhorar ocorrem as grafias <en>/<ẽ>, mas nos verbos relacionados (apenhorar, empenhorar e penhorar) aparecem também as grafias <egn> e <enh>, o que permite regularizar as formas gráficas das vedetas dos quatro verbos. Também permaecer, que não está atestado com vogal nasal, tem uma nota de rodapé em que se representa a vogal nasal /ã/ por analogia com os verbos relacionados: maer, remaecer, remaer, e tendo em conta o étimo: "perm/ã/ecer; do latim permanescěre".

As representações fonémicas têm carácter conservador, tentando dar conta de articulações arcaicas mesmo quando possa haver suspeitas de que o segmento em causa poderia não ter exactamente essa realização.

 

VERBOS RELACIONADOS

São indicados como relacionados os verbos morfossintáctica e semanticamente próximos. As remissões de uns verbos para outros são feitas entre parênteses curvos, à direita da vedeta.

Ex:    APENHORAR (CF. PENHORAR, SOPENHORAR)
         PENHORAR (CF. APENHORAR, SOPENHORAR)
         SOPENHORAR (CF. APENHORAR, PENHORAR)
           

Também as expressões constituídas por dois verbos aparecem relacionadas com o verbo semanticamente menos informativo, embora figurem como dependentes do verbo mais informativo.

Ex. QUERER (Cf. QUERER DIZER)

A entrada de querer dizer foi considerada dependente do verbo dizer, estando, assim, também associada a querer.

 

CLASSIFICAÇÃO DAS FORMAS VERBAIS

As formas gráficas do paradigma flexional de cada verbo são acompanhadas do número de ocorrências (total e por texto) e das siglas dos textos em que ocorrem. No caso do verbo dar, o número total de ocorrências contabilizadas vem seguido da indicação "+ (...)", pois o grande número de ocorrências no corpus das formas do, da, de e d(e), comuns ao verbo e à preposição, exigiria um longo trabalho de desambiguação. As formas ambíguas referidas são igualmente seguidas de "(...)".

As formas gráficas são registadas na ficha respectiva precedidas da etiqueta da classificação gramatical de modo, tempo, pessoa, género e número, quando apropriado.

Modo, tempo:

IP - Indicativo Presente
IPI - Indicativo Pretérito Imperfeito
IPP - Indicativo Pretérito Perfeito
IP+ - Indicativo Pretérito-mais-que-Perfeito
IF - Indicativo Futuro
C - Condicional
I - Imperativo
G - Gerúndio

PR - Particípio Presente
CP - Conjuntivo Presente
CPI - Conjuntivo Pretérito Imperfeito
CF - Conjuntivo Futuro
INFL - Infinitivo Flexionado
INF - Infinitivo
PP - Particípio Passado

 

Pessoa, género, número:

  • 1, (...), 6 = pessoa
  • f = feminino
  • m = masculino
  • s = singular
  • p = plural

Exs.: INFL4  darmos2 (CA1, CHP1)

        PPf.p.  dadas  9 (CA1, HGP1, FR7)

Nos casos em que não é possível decidir entre duas classificações de modo/tempo, as formas gráficas atestadas estão associadas a etiquetas com informação alternativa. São, nomeadamente, formas de primeira pessoa do plural de verbos de tema em "a", ambíguas entre a classificação de Presente do Indicativo e a de Pretérito Perfeito ? IP4/IPP4 ?, e formas que podem corresponder ao Futuro do Conjuntivo ou ao Infinitivo, Flexionado ou não ? CF/INFL; CF/INF. Só são classificadas com a etiqueta de Infinitivo Flexionado as formas que apresentam flexão inequívoca ? na segunda pessoa do singular e do plural e nas três pessoas do plural.

Algumas formas verbais amalgamadas com clíticos aparecem entre chavetas. Trata-se de casos de mesóclise e de outros em que a forma verbal ficaria incompleta ou alterada sem o clítico.

Exs.:    IF5 { darnosslaed(e)s 1 (HGP)}
           INFL5 { dardenolo 1 (HGP)}

 

ACEPÇÃO EM PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO

As acepções são indicadas mediante equivalentes modernos, sempre que possível, por sinónimos ou por breves perífrases. A cada acepção corresponde um algarismo árabe. Em alguns artigos, porém, encontram-se expressões multipalavra ou lexias complexas com numeração autónoma.

 

SELECÇÃO SEMÂNTICA

A selecção semântica é explicitada na proposição, que dá conta do número e do tipo de argumentos associados ao verbo. Um argumento animado é referido através do termo genérico "alguém", que recobre, por isso, argumentos humanos e não humanos; um argumento não animado é referido como "algo"; um argumento sem este tipo de restrição é referido por "alg". Para além destes, são ainda usados termos genéricos como "função", "situação", "lugar", "fazer", "acontecer", etc.

Na proposição, o verbo é apresentado no presente do indicativo (sublinhado, na forma gráfica correspondente à vedeta), registando-se as preposições e outros núcleos funcionais seleccionados. A ordem dos constituintes é a seguinte: argumento externo - verbo - argumento/s interno/s. Distinguem-se aqui os verbos transitivos, intransitivos e inacusativos, a que correspondem, no essencial, as proposições seguintes: alguém verbo algo; alguém verbo; verbo alg, respectivamente.

Dada a especificidade deste trabalho, que assenta na descrição baseada num corpus limitado do período mais antigo do português, muitas das descrições correspondem a hipóteses assentes também no conhecimento do português actual, quando compatíveis com os dados recolhidos no corpus.

Quando a uma mesma acepção correspondem várias proposições, são constituídos diferentes blocos de descrição sob o mesmo algarismo.

 

SELECÇÃO SINTÁCTICA

A selecção sintáctica, ou subcategorização, especifica o número e a categoria dos complementos do verbo. Tal como na explicitação da proposição, o conhecimento do português actual fundamenta a análise apresentada.

Quando os complementos dos verbos são frases temporalizadas, são indicados os complementadores que as podem introduzir, assim como o modo seleccionado - [ ― que/se Find ] vs. [ ― que/se Fconj ].

Quando os complementos são infinitivos, a estrutura de subcategorização correspondente é [ ― Vinf ].

Quando os complementos podem ser ou não regidos de preposição (tipicamente "a" ou "de"), a preposição fica entre parênteses curvos e a categoria especificada é a do constituinte à sua direita - [ ― (a/de) SN ].

No caso dos verbos predicativos, são especificados o sujeito e o predicado da oração pequena que seleccionam - [ ― [ SN SX ] ].

Para além das já referidas, as estruturas de complementação básicas são as seguintes: [ ― ]; [ ― SN ]; [ ― SN SP ]; [ ― SP ] e [ ― SP SP ].

 

EXEMPLOS

Os exemplos são excertos escolhidos com base nas concordâncias. O símbolo "<...>" indica a omissão de texto não relevante. É sempre escolhida a atestação mais antiga, mas, se houver outros contextos mais completos ou mais claros, escolhe-se um segundo exemplo, e por vezes um terceiro. Houve a preocupação de registar ocorrências linguisticamente interessantes, como, por exemplo, a ocorrência do verbo dar com dois complementos nominais (ver acepção 1.).

Os exemplos são identificados com a data e com as siglas da fonte textual e da origem geográfica do manuscrito.

Nos exemplos, o verbo é destacado a negrito.

 

EQUIPA

Os membros da equipa que realizaram o trabalho de revisão e alargamento das fichas publicadas em 1999, bem como a análise dos verbos novos publicados nesta edição, são:

  • M.Francisca Xavier, Graça Vicente, M.Lourdes Crispim, M. Cristina Silva, Fátima Martins, João Loureiro e Sandro Dias7.

A concepção, o desenvolvimento e a manutenção da base de dados do dvpm são da responsabilidade de Luís Reis.

 

Lisboa, 2002

 

ERRATA

A ERRATA do DVPM em suporte de papel está já disponível online.


1 - O desenvolvimento do dvpm faz parte de um projecto subsidiado por fct-mces e pocti.

2 - Ver lista das fontes textuais do cipm seleccionadas para a extracção e estudo dos verbos aqui publicados.

3 - Paralelamente, procedeu-se à revisão dos textos incluídos no cipm, visando, por um lado, uniformizar os critérios formais das edições digitalizadas, e, por outro lado, corrigir problemas detectados. No sentido de se conseguir uma maior uniformização dos sinais de notação estabelecidos para o cipm, procedeu-se a uma redução dos mesmos. Assim, a revisão do cipm teve as seguintes consequências para o Dicionário: (i) alteração tanto de sinais de notação presentes nas formas gráficas de cada verbo como nos exemplos e (ii) modificação de algumas referências dos exemplos. Em particular, a alteração de datações de fontes textuais teve implicações na escolha de alguns exemplos, dada a decisão de registar no dvpm as atestações mais antigas.

4 - Edição digitalizada de Graça Videira Lopes.

5 - São também incluídas vedetas com a forma de particípio passado, quando só esta se encontra atestada e não corresponde a um particípio passivo. Às vedetas participiais não está associada a descrição semântica e sintáctica própria das entradas das vedetas infinitivas, claramente verbais.

6 - Ver adiante verbos relacionados.

7 - A construção do DVPM e do CIPM teve início no âmbito do projecto Gramática do Português Medieval. Contributos para a sua Caracterização (PCSH/C/LIN/537/93), subsidiado pela JNICT-MCT. Além da equipa acima referida, indicam-se a seguir os nomes dos docentes e estudantes que participaram, anteriormente, na construção do DVPM e/ou do CIPM: M.Teresa Brocardo, Stephen Parkinson, Adriana Cardoso, Alexandra Fiéis, Ana Castro, Ana C. Reis, Ana M. Gonçalves, Carla Silva, Carlos Rocha, Catarina Caires, Mafalda Proença, Manuel Freitas, Maria Lobo, Pedro Pinto, Susana Pereira e Teresa Oliveira.
Uma proposta de "transcrição fonética" dos verbos da edição de 1999 elaborada por António Emiliano consta do relatório final do projecto acima referido.

Projecto financiado por FCT-MCES.